Divagações de um CVXista sobre Lisboa, a Patagónia …. e o tempo.

De facto, Lisboa é uma cidade lindíssima, bem mais luminosa que o chuvoso Porto. O Sol parece mais radioso e as ruas mais amplas e abertas. Mas ainda agora estranho esta gente. Normalmente vou para o trabalho de metro e de manhã quando entro, reparo sempre em olhares cinzentos (talvez ensonados) e indiferentes. Quando as portas do metro se abrem, aquilo parece uma enxurada de gente a sair e correr pelas escadas acima... o que confesso me impressiona. Que noção tão diferente do tempo que as pessoas têm, perante a mesma realidade. Quero eu dizer, eu tb tenho horas para entrar no emprego, mas pergunto-me se valerá a pena aquela corrida - no final alguns deles ainda os apanho à espera de outro metro, noutra linha. É qualquer coisa de caricato que não consigo racionalizar. Isto por mais estranho ainda, mandou-me para uma outro episódio, talvez como forma de escape desta vida tão urbana de Lisboa.

Há algum tempo atrás um grupo de amigos decidiu explorar outros territórios, mais longínquos do que as calcorreadas altas terras lusas e ibéricas, tanto mais que era uma viagem há muito desejada e planeada.

Essa viagem compreendia caminhar durante algumas semanas na Patagónia, sempre de mochila às costas que também incluía a tenda - naquilo que se chama de caminhar em autonomia. E não sendo ambição caminhar o máximo número de quilómetros possível, o objectivo era descer desde o Monte Fitz Roy, passando pelo Parque Nacional das Torres del Paine, até Puerto Natales e daí de autocarro seguir até Punta Arenas, conhecida por ser a porta de entrada na Tierra del Fuego.

Do tempo que se passou a caminhar, não ficou qualquer registo de perda de tempo, ao contrário das viagens de autocarro. Aquelas infindáveis horas sentado encostado ao vidro, foram autênticos banhos de assento – a lentidão do autocarro que nas estradas ziguezagueantes mal cabia sozinho, quanto mais quando se cruzava com outro, também ele cheio de passageiros e carga, ou os transbordos e paragens para entrada e saída
de gente, que mais pareciam festas e aquelas horas… que se perderem na passagem das fronteiras entre a Argentina e o Chile, símbolo de discórdias também elas já perdidas no tempo… às vezes para fazer 300 km perdiam-se 8 horas, que iam directamente para o caderno das memórias. Dessas viagens ficaram imagens de rostos morenos, de Mapuches vestidos com roupas garridas, que de olhar humilde e com um ligeiro sorriso nos lábios sem nada dizerem tiravam à pressa do porão do autocarros malas e cestos e ainda mais malas, para que a polícia de fronteira pudesse ficar satisfeita e mais rapidamente os mandasse por
outra vez tudo lá dentro e seguirem enfim novamente a viagem. Gente que nada esperava encontrar ali, mas cujo único objectivo era chegar ao destino onde um familiar, ou um trabalho os aguardava. Tudo o resto parecia não ter qualquer importância. Para aquelas pessoas, era como se aquelas horas perdidas no autocarro fizessem também elas parte
daquelas “pampas”. Para eles aquilo não eram horas perdidas, era o ritual típico de quem anda de autocarro na América do sul, como diziam aqueles homens da terra.

Depois de alguns dias a vaguear pelo “fim do mundo” a beber aquela paisagem indescritível da Tierra del Fuego, com aquela mistura de cor verde dos montes, amarela das pampas, azul forte do mar e cinzento chumbo do céu, optou-se por regressar novamente de autocarro desde
Ushuaia até Punta Arenas e daí apanhar um voo até Buenos Aires. A “aventura” duraria cerca de 8 horas, e incluía além do tradicional autocarro, uma passagem pela fronteira, e um ferrie para atravessar o Estreito de Magalhães. Ainda assim, parecia justificar o exorbitante
preço de uma viagem de duas horas de avião. Bom, o tempo estava muito instável, intercalando entre o sol e a chuva batida, sempre acompanhado pelo interminável “ventisquero” da estepe. Chegados a uma terriola de nome Porvenir (ao final de mais de 6 horas de viagem),
onde supostamente estaria o barco à espera, não havia nada senão o ancoradouro vazio e já uma fila de camiões que já se apinhavam, quase todos eles cheios de ovelhas. Afinal o mau tempo no canal impedia as viagens do barco e o clima aparentemente dominava a vida daquela gente, a maior parte deles agricultores que levavam as suas produção
de ovelhas para Punta Arenas para vender e que faziam daquele trajecto alguns deles mais do que duas vezes por semana, o seu ganha pão.

Da conversa com um deles ficou-se a saber que o mau tempo normalmente não durava muito, talvez uma hora ou duas, mas que no mais tardar, pela hora de jantar já se estaria em Punta Arenas. E assim o pessoal foi por ali andando, comiscando qualquer coisa, olhando para o canal, lendo um livro, ou escrevendo qualquer coisa. A certa altura as duas horas já tinham voado e batiam quase as 3 horas de espera e a única coisa que tinha mudado era a fila de camiões que tinha aumentado. Um café ali próximo estava apinhado de camionistas, que partilhavam as mesas e as conversas entre si, talvez já se conhecessem de outras esperas. E entre cartas batidas na mesa e copos de cerveja bebidos, lá iam mirando pela janela como que perguntando-se se faltava muito para saírem dali.

Um deles em conversa confessou que aquilo não era nada bom. Se o tempo assim se mantivesse provavelmente os animais que iam no camião não aguentariam a espera e acabariam por morrer, tornando a viagem um prejuízo. O curioso é que ele dizia aquilo com olhar quase indiferente. Preocupado, mas indiferente, como de quem já sabe o que
lhe espera a seguir. Finalmente ao fim de 8 horas de espera lá apareceu o barco e quase
parecia que Buenos Aires estava ali ao pé. Uma viagem de autocarro que acabou por durar mais de 16 horas.

Foram 16 horas de olhares, de conversas, de silêncios, de suspiros, de pensamentos e devaneios. Foram 16 horas a somar a outras intermináveis horas dentro de autocarro, quando lá fora, aquele continente tinha tanto e tanto para mostrar. Isto sim, que perda de tempo!!

E é com estas situações que perante uma correria que acaba à de frente de uma linha de metro debaixo da terra que eu fiquei a pensar, na relatividade do tempo - a insustentável leveza do tempo.

 Infelizmente, já não me lembro do nome daquele produtor de ovelhas em Porvenir.

Nuno Pereira

Radicais Livres